O Ateu, a UEB e o Armário

Por Ricardo Machado

Em 2009, os “Escoteiros do Brasil” lançaram a temática anual chamada “Escotismo é Inclusão”, que atendia recomendações da Conferência Mundial do Movimento Escoteiro do ano de 1988 sobre a prática do Escotismo para portadores de necessidades especiais de qualquer tipo.

O documento exortava as associações escoteiras a rever seus programas com o intuito de satisfazer as necessidades de todos os jovens, independente das necessidades que viessem a possuir, a fim de incluí-los nos grupos escoteiros.

O resultado disto é que tivemos um ano com grandes atividades escoteiras onde os jovens eram encorajados a “sentir na pele” como é ser um portador de necessidades especiais, os levando a entender as dificuldades e as superações que estas pessoas vivem no dia-a-dia.

Aqui devo abrir um parêntese para falar sobre outra instituição da qual faço parte e que por um longo tempo segregou portadores de necessidades especiais e ateus: a Maçonaria.

Os Landmarks (termo em inglês que significa ”marco de terra” e que ilustra as Leis Permanentes da Maçonaria Regular), em sua compilação feita por Mackey, diz que “por este Landmark, os candidatos à Iniciação devem ser isentos de defeitos ou mutilações, livres de nascimento e maiores. Uma mulher, um aleijado ou um escravo [negro]) não podem ingressar na Fraternidade.”.

Para ser maçom, o candidato também deve “crer em um Ser Superior” e na “Imortalidade da Alma”, fato que aproxima, e muito, a Sublime Ordem e o Movimento Escoteiro.

Na teoria, os Landmarks são perpétuos, imutáveis e tem por objetivo garantir a perpetuidade da Sublime Ordem, deixando-a evoluir enquanto mantém sua essência imaculada.

Não deve ser novidade para ninguém que a Maçonaria, apesar dos Landmarks “perpétuos e imutáveis”, já aceita em seu seio negros e portadores de necessidades especiais.  E, pasmem, no Rito Moderno (ou Francês) já são aceitos ateus, agnósticos e areligiosos há muito tempo, assim como não adota a existência da Bíblia no “Triângulo de Compromissos” (“Altar de Juramentos” em outros Ritos), não evoca o nome do “Grande Arquiteto do Universo”, dentre outras particularidades. E não estamos aqui falando de “Maçonaria espúria” ou “irregular”, mas de um Rito reconhecido pelas Potências Maçônicas Regulares do Brasil e do Mundo.

Fecha parênteses.

Retornando à realidade do Movimento Escoteiro, muitos dizem que para alguém ser escoteiro deve crer em um ser superior (Deus) e, por consequência, em uma alma imortal. Em defesa destes princípios, evocam a “Tradição” e os “Princípios” escoteiros para justificar que aqueles que não creem em deuses não podem integrar a Grande Fraternidade Escoteira.

Assim como aqueles que praticam o Rito Moderno não deixaram de ser reconhecidos como Maçons, os escoteiros de associações nacionais que não citam “Deus” em suas Promessas ou implantaram um texto alternativo para elas não deixaram de fazer parte do Movimento Escoteiro mundial.

O que ocorreu, tanto na Maçonaria, quanto no Escotismo em alguns países, é que se entendeu que é muito melhor nos atermos ao que nos une do que darmos enorme importância para o que nos separa.

Os teístas ainda acreditam que o ateu é uma pessoa revoltada, infeliz, sem esperanças, com um vazio interior, que se rebelou contra “Deus” por conta de não ter recebido o que queria (como se divindades fossem gênios da lâmpada dispostas a atender todos os pedidos dos mortais) e tantos outros equívocos.

Não é incomum também lermos que “não tenho preconceito contra ateus” para logo depois emendar: “desde que ele mantenha seu ateísmo para ele mesmo, sem militância, sem expor suas ideias publicamente”. A visão corrente é que ateus “devem enfrentar de forma estoica o vazio interior causado pela descrença, sem apelar para ideologias ou modas intelectuais”, como recentemente li em um site cristão.

Aliás, as pessoas sempre dizem que não são preconceituosas, para logo em seguida a esta afirmação condicionarem o seu “não preconceito” a algumas regras: “não tenho preconceito contra gays, lésbicas e afins, desde que não tenham trejeitos, não falseiem a voz, não tenham demonstração pública de carinho, não adotem crianças e não se casem”.

Ou seja, o preconceito não existe contra ateus e homossexuais, desde que eles se mantenham fechados em seus armários.

Diferente da Maçonaria, que acolheu ateus e agnósticos em suas fileiras através do Rito Moderno, o Escotismo brasileiro mantem seus associados nestas condições dentro de “armários”, sem coragem de se declarar publicamente assim, pois sabem que serão isolados, segregados e, como sugere a ficha técnica “Escotismo e crenças em Deus”, convidados a se retirarem do Movimento Escoteiro.

Ao tornar este debate público, eu e os demais responsáveis pelo Projeto “O Escoteiro Ateu”, muitos deles ateus, outros agnósticos e até mesmo teístas, sabíamos que as reações dos setores conservadores e religiosos do escotismo brasileiro seriam as piores possíveis.

Já houve ameaças de medidas disciplinares, expulsão e outras tantas coisas que os mansos e amorosos” cristãos, que dizem seguir a risca o que Jesus Cristo pregou, não deveriam ser os autores.

Outra característica destes fundamentalistas religiosos é ignorar questões relevantes no debate, sendo que a principal dela, que repetimos “ad nauseam”, é de que não queremos expulsar “Deus” do escotismo ou mesmo retirar a menção de deveres para com ele da Promessa. A nossa proposta é que, como acontece em várias associações escoteiras pelo mundo, que exista um texto opcional sem tal menção e que aqueles que não têm crença em nenhum ser divino e invisível possam ser tão úteis ao Ideal de B.-P. como os crentes.

Também ignoram que a The Scouts Association (TSA), a Associação Britânica de Escotismo, berço do Movimento Escoteiro, simplesmente abriu suas portas para jovens e adultos ateus, agnósticos e areligiosos. E, como já falamos diversas vezes, não somente a TSA, mas também a TGA e tantas outras associações ao redor do mundo agiram da mesma forma.

Mas os fundamentalistas insistem em dizer que sem “Deus” o Movimento Escoteiro perde a sua razão de ser. Que B.-P. institucionalizou o “tripé” “Deus / Pátria / Família” e que se algum destes falta, pronto: tudo desmorona.

O fato é que na Inglaterra, Finlândia, França, Holanda, etc, o tripé não foi “quebrado”, apenas abriu-se oportunidades para que mais pessoas pudessem conhecer e colaborar com o Movimento Escoteiro.

Embora originalmente fundada sobre moldes cristãos, o Escotismo há muito saúda membros dos mais diversos credos e tradições religiosas, inclusive que discordam frontalmente de muitos dogmas do Cristianismo.

Então, qual é mesmo o problema com ateus e agnósticos?

Fazer parte de religiões declaradamente contra os princípios do Cristianismo e até me mesmo que declaram cristãos como “inimigos de Deus”, tudo bem, mas “longe de nós estes ateus hereges”.

Realmente, não há como compreender.

 “Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez”, já dizia o grande William Shakespeare.

A declaração pública do meu ateísmo, por óbvio, trouxe consequências como expus ao longo deste artigo. No entanto, como tenho direito adquirido como associado da União dos Escoteiros do Brasil e não existe norma alguma que permita a minha exclusão da mesma por conta da minha mudança de postura no que diz respeito à questão “Fé” não há o que se fazer comigo.

O que quero deixar claro, inclusive em nome dos demais responsáveis pelo Projeto “O Escoteiro Ateu”, é que ele surgiu para que aqueles que se encontram neste dilema saibam que não estão sozinhos e que podem constar conosco.

Não tenho idéia se fui o primeiro escotista da UEB a declarar publicamente ser ateu. Mas o que importa é que resolvi “morrer apenas uma vez” e ter a liberdade de ser como sou não somente na minha vida fora do Movimento Escoteiro.

Seria enganoso afirmar que se declarar publicamente ateu no meio escoteiro não mudará nada em sua vida, que tudo ficará como antes, que não será vitima de perseguições, segregações, isolamento.

Mas garanto que o ar aqui do lado de fora é bem mais puro.

4 respostas em “O Ateu, a UEB e o Armário

  1. Boa noite!
    Pesquisando sobre escotismo, caí aqui na sua página e fiquei bem surpresa. Na verdade, não fazia ideia de que ateus não são bem aceitos dentro do grupo e lamentei muito, pois aguardava ansiosa que meu filho chegasse na idade para ingressar nos lobinhos. Que pena! Enfim, continuarei acompanhando e quem sabe, nos próximos dois anos haja alguma evolução.
    Gostei muito de lê-lo. Obrigada.

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    • Boa noite.

      Posso te dizer tranquilamente uma coisa, não desista. Ponha o seu filho em um bom grupo escoteiro e deixe ele curtir esta fase maravilhosa. Não o prive disso. Há muitos de nós no movimento, e cada vez haverá mais, só depende de nós mudarmos este quadro. Como dizem no ramo Lobo, O Melhor Possível!!!

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